*Texto originalmente publicado em 2015 no site "Cientista que virou mãe"
O feminismo entrou de vez na minha vida junto com o nascimento do meu filho. Foi a maternidade que me mostrou o quanto eu precisava ser feminista. A partir daquele momento comecei a me dar conta que as cobranças em relação à mãe eram imensamente maiores que àquelas dirigidas aos pais. Percebi que as violências obstétricas que sofri e que acabaram culminando em uma cesárea indesejada eram frutos de um sistema misógino e machista que viola os direitos reprodutivos femininos. Passei a me incomodar com a reação diante do meu corpo despido que amamenta em público, olhares que violam, comentários que julgam, conselhos que passam por cima da minha autonomia sobre meu corpo.
Ora, diante do quadro que a
maternidade se apresentou a mim, como não me declarar feminista? Como não lutar
pela autonomia do meu corpo? Autonomia esta que deveria me garantir se quero
engravidar, se quero manter a gestação, se quero parir, onde e como quero
parir, se quero amamentar, onde quero e por qual período.
E foi há pouco tempo que passei a
perceber que esse encontro – que para mim, parecia tão óbvio – é, na verdade,
bastante conflituoso. De um lado argumentos defendem que a maternidade
aprisiona as mulheres e de outro, que o feminismo tangencia o cuidado com as
crianças. E tenho me debruçado desde então sobre estas questões e achado que,
embora haja muita confusão aí, nenhuma das premissas está totalmente errada.
É inegável que a maternidade, de certa
forma, nos limita. Criar filhos dispensa tempo, dinheiro, disposição, cuidados.
E, ainda, quando existe um comprometimento real pelo bem-estar afetivo e
emocional da criança, a criação dos filhos não é nada fácil. Alia-se isso ao fato de
que a sociedade patriarcal impinge a responsabilidade exclusiva das mulheres tanto
a maternagem como as atividades domésticas e, assim, temos uma legião de
pessoas que, de fato, está presa a estas condições que lhe são previamente impostas.
Quantas estudantes não param de
estudar após a gravidez? Quantas trabalhadoras abandonam a carreira em prol dos
cuidados com os filhos? Quantas militantes suspendem lutas por não haver
acolhimento à criança em suas bases? Quantas mulheres abandonam sonhos pela
maternidade?¹ E quantos pais fazem isso? É evidente que a carga é muito mais pesada
para elas do que para eles:
“Desde Durkheim, sabe-se que o casamento prejudica as mulheres e
beneficia os homens. Um século depois, a afirmação deve ser entendida em suas
nuances, mas a injustiça doméstica permanece: a vida conjugal sempre teve custo
social e cultural para as mulheres, tanto no que diz respeito à divisão das
tarefas domésticas e à educação dos filhos, quanto à evolução da carreira
profissional e à remuneração. Hoje, não foi propriamente o casamento que perdeu
o caráter de necessidade, mas é a vida matrimonial e, sobretudo, o nascimento
do filho que pesam sobre as mulheres²”.
Importante pontuar que a trajetória
que o movimento feminista percorreu, até que se disseminasse a ideia de que a
maternidade é um obstáculo à libertação feminina, justifica esse conflito.
É nos anos 60 que se inicia a segunda
onda feminista³, em que mulheres – grande parte influenciadas por Simone de
Beauvoir – não satisfeitas com a igualdade formal antes conquistada, passam a
lutar também pela igualdade material. Apesar da igualdade garantida em lei, as
mulheres ainda pertenciam de fato aos seus maridos, visto que dependiam
economicamente deles.
O caminho para a equidade seria,
então, a conquista do espaço público. O trabalho remunerado foi o meio
encontrado para se alcançar a efetiva liberação das mulheres⁴. No entanto, o
cuidado com a casa e com os filhos se mostrou como um entrave para estas
conquistas e acabou por triplicar a jornada da mulher.
À medida que historicamente a mulher
vai conquistando a igualdade formal perante o homem, a ideia de mulher maternal
vai novamente ganhando força. O mito do instinto materno, que sugere que todas as
mulheres têm capacidade e vontade inata para a maternidade, cresce conforme as
conquistas feministas se apresentam. Controlar as mulheres inculcando-as a
ideia de que são rainhas do lar e as melhores cuidadoras para os filhos com o
intuito de que se abstenham de conquistar o espaço público é um grande trunfo
do patriarcado.
Analisando períodos históricos,
constata-se que a relação direta da mulher com a maternidade nem sempre foi tão
forte. Inclusive, desde o século XIII era muito comum que bebês de famílias
aristocratas fossem enviados para os cuidados de amas de leite. A função da
mulher na aristocracia era a da procriação, para manutenção do nome e dos bens
de família, e de cumprir obrigações sociais, tais como participar de eventos da
alta sociedade.
O costume de não ficar com seus bebês
entregando-os às amas de leite popularizou-se entre a burguesia no século
XVIII. E era símbolo de status social não se preocupar com questões maternas.
Ocorre que esse desprendimento em
relação à maternidade foi muito prejudicial às crianças, Elisabeth Badinter
afirma que na sociedade francesa do século XVIII “a mortalidade das crianças com menos de 1 ano era visivelmente superior
a 25%, e aproximadamente uma em cada duas crianças não chegava aos 10 anos⁵”.
Portanto, o modelo ideal de
maternidade é moldado de acordo com as ambições da sociedade o qual faz parte e
quase nunca está relacionado com a preocupação real com o bem-estar da criança.
Por isso, almejar ser uma mãe ideal ou mesmo uma boa mãe é uma grande
armadilha, visto que foca-se na mulher e se esquece de pensar nas verdadeiras
demandas da criança.
A presunção de que nascemos prontas
para sermos mães é uma das responsáveis pelo sentimento de culpa que assola a
maioria das mulheres, porque não se sentir dotada dessa capacidade inata acaba
por minar a confiança das mães perante seus bebês. O instinto materno não
existe, tanto é verdade que psicanalistas do mundo todo comprovam que a
infância é uma fase traumática, muito por conta da negligência na criação. Se
realmente ser mãe fosse um dom inato, erros seriam exceções e toda criança
seria bem cuidada e respeitada. Contudo, o exercício de maternar nada mais é do
que um aprendizado de alteridade, recheado de erros e acertos.
E foi com a certeza de que o destino
final de toda mulher não se encerra necessariamente na maternidade, que as
feministas representantes da segunda onda encaram os filhos como obstáculos à
liberação da mulher, em que a maternidade é vista como uma forma de servidão. E
deste discurso nasce o conflito entre maternidade e feminismo. Mas precisar ser
assim?
Empreendendo o cuidado coletivo
Em toda a nossa história, poucas são
as civilizações que compartilham igualmente entre todos os cuidados com as
crianças. Entre indígenas e tribos africanas é muito comum que as crianças
sejam responsabilidade de todas as mulheres da aldeia. Essa divisão, ainda que
não igualitária porque não costuma contar com homens, já torna o exercício da
maternagem mais fácil e acolhedor do que a realidade atual, em que mães devem
dar conta sozinhas, no melhor (ou seria pior?) estilo do “quem pariu Mateus que
o embale”.
Porem, parto do princípio de que se o
instinto materno é uma grande falácia, qualquer pessoa estaria apta para os
cuidados com a criança. Sendo assim, primeiramente me ocorreu a urgência da
necessidade de convocarmos o homem para ocupar o espaço privado. Ora, neste
blog, temos apenas cerca de 3% de homens leitores! É incontroverso o fato de
que homens se eximem do cuidado e sobrecarregam as mulheres, independente da
condição social que se encontram.
Contudo, após debater e refletir bastante
sobre o assunto, acho que seria inócua essa convocação. Afinal, como quero que
o homem assuma o espaço privado se tenho que pegar-lhe pela mão e introduzir no
debate? Acredito que a forma mais efetiva de se pensar sobre cuidado seria
começar a questionar os papéis de cuidadores. Até que ponto alguma tarefa
precisa ser necessariamente da mãe? Qual a figura do pai da relação? E, indo
mais além, essa relação precisa ser mesmo triangular?
Quando se coloca o debate sob esse
ponto de vista, fica claro que estamos falando de relações heteronormativas,
mas precisamos abarcar aqui também outras formas de cuidado. E é aí que entra a
beleza das relações homoparentais ou mesmo onde o cuidado compartilhado é uma
realidade. Porque nestas relações se torna muito mais fácil se introduzir a
discussão acerca do esvaziamento de papéis. Ou seja, em que o vínculo
necessário ao desenvolvimento infantil pode ser formado por qualquer pessoa
independente do seu gênero.
Imperioso salientar que o bebê
recém-nascido possui a necessidade fusional. É muito importante para o seu
desenvolvimento que nos primeiros meses exista um cuidador principal disposto a
integrar essa díade, e concordo que a melhor pessoa para ocupar esse espaço seja
a mãe.
E isto não apenas por conta da importância
da amamentação, mas porque o pós-parto prepara a mulher, através da produção de
hormônios, para que exista uma pré-disposição para ocupar este lugar. Donald
Winnicott chama esse estágio de “preocupação materna primária”6. No
entanto, considerar o efeito dos hormônios sobre o corpo da mulher bem como o
tempo de sua duração não significa respaldar o determinismo biológico que
preconiza que somente a mãe biológica poderá integrar o processo fusional com o
bebê.
Ainda, compor a díade mãe-bebê é algo
tão intenso e avassalador que se torna indispensável contar com uma rede de
apoio, sob pena de se desenvolver um baby-blues
podendo evoluir até mesmo para uma depressão pós-parto.
Portanto, ainda que o cuidado não seja
direto com o bebê, é necessário que haja alguém para cuidar da mãe e realizar
as atividades domésticas e esse papel pode e deve ser desenvolvido pelo
companheiro e pai da criança. Assim como, por outra pessoa que tenha essa
proximidade com a mãe, como por exemplo, sua companheira.
Ainda, para além dos cuidados nos
primeiros meses, a fim de evitar a sobrecarga materna, é urgente a
reivindicação pelo cuidado coletivo. Cuidar coletivamente é pensar a criança como
uma responsabilidade social, promovendo condições para o desenvolvimento da
criança. E este desenvolvimento não se dá de maneira plena quando a
responsabilidade é delegada exclusivamente a uma só pessoa.
Portanto, o cuidado coletivo pressupõe
além da participação do homem no espaço privado, também ao acolhimento da
criança no espaço público. E aqui não me limito apenas à figura do pai, e
incluo também o avô, o irmão, o tio, o amigo. Somente com a participação ativa
de TODOS nos cuidados com a criança é que se pode esperar uma mudança na esfera
legislativa, corporativa e social. Enquanto os cuidados continuarem a ser
delegados às mulheres, a maternidade continuará a aprisionar. Afinal quem
consegue tempo e disposição para realizar seus anseios pessoais tendo que
cuidar da casa e dos filhos sozinha?
A proteção à infância perpassa também o
suporte dado a seus cuidadores. Portanto, não há como falar em cuidado
coletivo, sem mencionar a necessidade de uma legislação que assegure licenças
parentais e que garanta aos cuidadores leis trabalhistas que permitam o
exercício da maternagem ao mesmo em que a carreira não seja prejudicada.
Porque quando só as mães podem gozar
da licença (ainda que ínfima) e somente a elas recai a responsabilidade pelo
cuidado há uma evidente discriminação entre as funcionárias e funcionários.
Essa polarização é também um dos motivos delas perceberem remuneração inferior
a deles e de terem mais dificuldade em crescer na carreira e, levando em conta
esse cenário, são elas que preferem abandonar a profissão para se dedicar à
criação dos filhos.
Além disso, entender a infância como
um dos pilares mais essenciais da vida em sociedade fomenta o debate quanto à
responsabilidade que cada pessoa tem em relação aos filhos dos outros. Seja
acolhendo a amiga que passa pelo puerpério, pensando se o horário e o local da
festa são apropriados para os filhos dos amigos convidados, oferecendo um local
para que a mãe possa amamentar, intervindo em caso de violência contra a
criança, pensando em locais acolhedores para receber os filhos de mães
estudantes e/ou militantes, olhando com empatia para aquela criança que chora
no avião/mercado/fila/restaurante. Enfim, poderia listar uma série de situações
cotidianas que excluem as crianças do espaço público e, assim consequentemente,
seus cuidadores.
Por todo o exposto, que não consigo
dissociar o feminismo da maternidade tampouco a maternidade do feminismo.
Descontruir o conceito iconoclasta da maternidade já é uma tarefa
exaustivamente trabalhada por feministas, agora é preciso, além disso, pensar
também nas crianças de modo a empreender o cuidado coletivo visando o bem estar
delas e a felicidade de suas mães. Porque ou a revolução será feminista, ou não
será.
1-
Importante ressaltar que a
maternidade pode representar uma prisão para àquelas mulheres que puderam um
dia gozar de liberdade. Porque é necessário falar que nem todas têm acesso ao
estudo formal, nem todas enfrentam o conflito de escolher entre carreira e
filhos porque não lhes é dada essa opção. Falar em escolhas é sempre falar do
alto de algum privilégio e reconhecê-los é enxergar que estamos rodeados de
possibilidades desiguais.
2-
Badinter, Elisabeth. O
Conflito: A mulher e a mãe. Kindle Edition. Posição 224
3-
A primeira onda feminista
surgiu no final do século XIX e perdurou até o início do século XX. Naquela
época, mulheres eram consideradas incapazes, pertencendo ao pai quando
solteiras e, após o casamento, aos seus maridos, quase como uma transmissão de
posse. Os casamentos eram arranjados e a mulher não tinha qualquer direito
político. Assim se inicia a luta por igualdade de direitos e pelo sufrágio
feminino. Como disse Simone de Beauvoir: “É
a primeira vez na história que se vê as mulheres tentarem um esforço como
mulheres”. As conquistas foram diferentes em cada país: enquanto as
mulheres neozelandesas podiam votar em serem votadas em 1893, igual direito
somente foi conquistado pelas brasileiras em 1932.
4-
Tanto a primeira como a segunda
onda feminista foram movimentos compostos por uma parcela bem específica de
mulheres: aristocratas e burguesas primeiramente e de classe média posteriormente.
É inegável o fato de que o capitalismo precisava de mão de obra e muitas
mulheres trabalharam em fábricas com o advento da revolução industrial, bem
como mulheres negras já exerciam trabalho remunerado muito antes destes eventos
– ainda que boa parte deste trabalho fosse de atividades domésticas e cuidados
com as crianças, portanto, ainda restrito ao ambiente privado. Ainda, o
discurso hegemônico conta a história do feminismo europeu e estadunidense, no
entanto, não se pode olvidar que mulheres do mundo inteiro se organizam e lutam
pela equidade de gênero.
5-
Badinter, Elisabeth. O
Conflito: A mulher e a mãe. Kindle Edition. Posição 2.577
6-
“Gradualmente, esse estado passa a ser o de
uma sensibilidade exacerbada durante e principalmente ao final da gravidez. Sua
duração é de algumas semanas após o nascimento do bebê. Dificilmente as mães o
recordam depois que o ultrapassaram. Eu daria um passo a mais e diria que a
memória das mães a esse respeito tende a ser reprimida”. WINNICOTT, D. Da
Pediatria à Psicanálise: Obras escolhidas. Rio de Janeiro, 2000. P. 401