sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Quando a birra vira patologia

Novamente viralizou pela internet um vídeo que expõe uma criança. Desta vez, tratava-se de um menino negro de 7 anos, aluno de uma escola municipal. Durante um acesso de raiva, o menino foi filmado por uma educadora e o vídeo publicado na internet. Sem qualquer sinal de tentar entender o que acontecia com ele, a educadora repetia para que ninguém tocasse no menino. O tom de deboche é evidente, deixando clara a intenção de dizer que a proibição de palmadas gera consequências como essa. Além disso, o menino é constantemente desafiado, o que intensifica os golpes que ele desfere contra os materiais da sala dos professores. Para terminar, a mulher que espantosamente é educadora pede para que chamem a polícia ou os bombeiros.

A reação explicitada na maioria dos comentários demonstra aquele velho pensamento adultista que sempre permeia este assunto. A violência contra a criança parece ser a única solução para silenciar os desconfortos demonstrados por ela. Portanto, o menino além de ter sido exposto por alguém que supostamente deveria zelar por ele, ainda se vê em meio a uma legião de pessoas que não demonstram pudor algum em incitar a violência contra ele. 

Mas por que agimos tão irracionalmente diante de uma "birra"? Uso a expressão assim entre aspas porque esta palavra é usada para se referir a uma demonstração de incômodo que acreditamos não ter razão de ser¹. E a expressão é usada principalmente para denominar ataques de raiva, fúria ou tristeza das crianças. Como se apenas pela fato de ela ser criança, seu incômodo fosse considerado menor ou desproporcional.

Pois bem, eu vejo essas "birras" como um marco super importante no desenvolvimento infantil. É na birra que a criança aprende a se colocar no mundo, se afirmar e se fazer ouvir. É neste momento que a gente percebe que a criança se reconhece como sujeito autônomo, separado de sua mãe.

Claro que estar presente naquele momento em que a criança se frustra, na figura de responsável por ela, é super difícil. Afinal, saber lidar com a frustração alheia é algo para poucos. Ainda mais quando a criança não tem desenvolvimento suficiente para conseguir nem entender o que está acontecendo, quanto mais saber controlar aquele sentimento. Porque além da imaturidade, a região do cérebro que coordena as emoções ainda está em desenvolvimento, Portanto, é algo realmente angustiante se frustar com algo e não saber racionalizar. Controlar a raiva é algo que aprendemos com o tempo e o que torna esse processo mais fácil é poder contar com a compreensão daqueles deveriam cuidar de nós.

Porque em momentos de angústia, às vezes, a única coisa que precisamos é de um abraço ou de um olhar compreensivo. Então, por que é tão difícil agir assim com uma criança? Por que a pulsão supostamente educadora parece falar mais alto do que o impulso de acolher? O que uma agressão poderia ajudar em uma caso desse?

Pelo vídeo não conseguimos saber nada daquele garoto. Não sabemos o motivo que o deixou tão furioso, tampouco se ele costuma agir dessa maneira e muito menos se aquela raiva tem origem em problemas familiares. Ora, toda criança age daquela forma. Algumas mais frequentemente, outras menos. Então por que reagir como se aquele menino fosse tão anormal?

O que quero dizer é que não acho que ele esteja necessariamente em sofrimento, ou que seja carente de amor ou, muito menos que tenha problemas psicológicos. E fico realmente assustada com a reação das pessoas que dizem querer defender o garoto usando algumas dessas hipóteses. Se fosse uma criança branca em uma escola particular, a reação seria a mesma?

Ao que me parece a vinculação direta entre desestrutura familiar e o ataque de fúria está diretamente ligada ao fato daquela criança ser negra e pobre. Como se a negritude pressuposse famílias incapazes de amar e proteger. Como se a pobreza implicasse em negligência.

Uma "birra" infantil não significa por si só que a criança viva em um ambiente hostil. Pelo contrário, poder se afirmar e se colocar é um ótimo sinal! Triste é saber que as pessoas não sabem lidar com a frustração alheia, ainda mais vindo de uma criança que não consegue racionalizar seus sentimentos.

A reação advinda deste momento tão peculiar da infância só revela adultismo, racismo e classismo. Por todos os lados. Seja daqueles que defendem o uso da violência contra a criança com daqueles que explicam a atitude do menino como falta de amor.

Tenho uma amiga que sempre repete: "A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto²". Repreender a criança, encaixotá-la, nada mais é do que querer normalizar a nós mesmos. Por isso esta ânsia em obter "normalidade" da criança. Para que não chore. Não grite. Não se zangue. Triste daquele que não pode se expressar por medo de repreensão, e muito mais triste é aquele que não o faz por incapacidade de se reconhecer como sujeito portador de vontades.




1. Significado de birra: a.ato ou disposição de insistir obstinadamente em um comportamento ou de não mudar de ideia ou opinião; teima, teimosia. bsentimento ou demonstração de aversão ou antipatia, esp. quando renitente e motivado por algum capricho, paixão ou suscetibilidade; implicância, má vontade.

2. Esta frase é de Paul Preciado e pode ser lida neste incrível texto.



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terça-feira, 6 de outubro de 2015

Das coisas que aprendo com meu filho

Então chega um dia que a gente percebe que tem muito mais a aprender com as crianças do que a ensinar. Já ouvi isso milhares de vezes, mas só venho entendendo agora o que quer dizer.

Tenho pensado que há três formas de exercer a alteridade. A mais comum, e infelizmente aquela da qual mais me valho, é a que despreza a realidade do outro e busca-se por explicações rasas e fáceis para justificar a realidade daquele que não sou eu. O que importa pro outro pode não importar para mim e ficamos por aí, sem qualquer pretensão de compreensão, incapaz de ver algo além de mim. Exemplo corriqueiro disso é querer explicar a situação alheia através de argumentos meritocráticos, em que se prega ser necessário apenas esforço para se atingir um objetivo, sem levar em conta demais fatores envolvidos na questão.

Também é possível se relacionar exercendo a empatia. E não acredito que isso seja um sentimento espontâneo, pelo contrário, vejo a empatia como um exercício que requer prática e racionalidade. Além disso, vejo a empatia como a tentativa de se colocar no lugar do outro. EU me coloco no lugar do outro, tento ver a realidade usando seus sapatos, entretanto, a partir dos meus olhos. Portanto, a empatia é eivada de uma intenção legítima de considerar o outro e sua realidade, todavia, não permite o acesso efetivo ao outro já que o EU se impõe. Sendo assim, empatia nada mais é do que se comover consigo mesmo. No entanto, acredito que essa seja a forma mais honesta de se relacionar com aqueles que não são tão próximos, afinal não é possível saber das histórias, limitações ou mesmo da realidade daquele que não conhecemos.

E há pouco tempo venho observando uma terceira possibilidade e esta é, sem dúvida, a mais difícil porem a mais efetiva maneira de acessar o outro. Ela consiste em esvair-se, deixando de lado o EU para que haja só o outro. É evidente que se desprender completamente de si é algo impossível, mas o que interessa é saber que para entender o outro o que menos importa é o meu EU. As minhas concepções e minha forma de ver o mundo (WELTANSCHAUUNG é uma expressão em alemão muito usada na filosofia para descrever o que quero dizer) pouco importam na realidade alheia. Conseguir tirar o meu EU do foco faz com que o outro se torne visível, porque somente assim eu consigo deixar de me para ver quem eu quero entender. A grande diferença entre a empatia e essa terceira possibilidade é que para aquela é necessário se por no lugar do outro. Ora, para isso é importante haver algum elemento de conexão, enquanto aqui cabe apenas a observação não sendo necessário um reconhecimento.

E cheguei nesta conclusão ao ver como meu filho se relaciona comigo e com as pessoas próximas. A criança possui a característica comum aos melhores cientistas: a observação. Ela observa não só o mundo a sua volta como também as pessoas e seus comportamentos. Ainda que ela não entenda o que é a morte, ela tem noção da relação de total dependência entre ela e os adultos. E entendê-los se torna uma questão de sobrevivência.

É no observar e entender a dinâmica de seu cuidador que a criança consegue obter o que é necessário para si. Não é à toa que as pessoas costumam dizer que os filhos se comportam diferente na presença da mãe. Ela, que costuma exercer a função de cuidador principal, torna-se o elo entre a criança e o mundo, por isso, entendê-la é vital para a sobrevivência da criança. Portanto, o filho passa a se relacionar com sua mãe da mesma forma que ela se relaciona com o mundo quando está diante dela. Ou seja, para a mãe fica fácil se reconhecer na criança, ainda que esse movimento seja inconsciente. E por existir essa conexão, há um convite para que a mãe empatize com o filho, no entanto, esse reconhecimento pode ficar restrito à criança que ela foi um dia sem se conseguir enxergar o indivíduo que se mostra na figura de filho.

Vários foram os momentos em que eu me peguei perplexa observando meu filho como se me visse num reflexo. Quantas vezes passei a entender melhor a dinâmica do meu marido ao observar pai e filho juntos. "Num retrato falado, eu, fichado e exposto em diagnóstico (...) Numa moldura clara e simples sou aquilo que se vê"[1]. É assim que me sinto perante meu filho: decodificada. É só observá-lo comigo para se ter uma leitura clara e límpida de quem eu sou.

E essa leitura é possível para as crianças porque, além de não estarem impregnadas de preceitos morais, elas conseguem deixar de lado o próprio self para ver o outro. Entender o outro neste caso é vital. E para nós, adultos, é fundamental que entendamos esse comportamento, sob pena de sacrificar o self da criança em troca de compreensão e reconhecimento. Porque esvair-se, desprender-se de si pode significar o sacrifício de se perder, de passar a incorporar o outro e assumir um falso self.

Uma coisa curiosa é que no alemão a palavra alteridade é "anderssein", que por sua vez pode ser traduzida por "ser o outro". Perceba, não é se colocar no lugar do outro e sim sê-lo. 

Essa é mais uma das coisas que venho aprendendo com meu filho. Muito mais do que exercer a empatia, a minha tentativa é entendê-lo para além de mim. É tentar enxergar o que ele realmente precisa quando me interpreta sob meus olhos. É poder respeitar e acolher o que ele realmente é nas suas mais diversas facetas.

Contudo, ainda que todas essas conclusões possam não passar de meros devaneios, tenho a certeza de que meu filho foi a pessoa que me fez olhar para dentro de mim, que tirou-me dos olhos um venda que insistia em me cegar diante de mim mesma e do meu verdadeiro eu.




[1] Letra da música Retrato para Iaiá de Rodrigo Amarante.

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