quarta-feira, 23 de novembro de 2016

De salvador de mulheres a mártir: A mentira do GO humanizado

Ontem saiu a publicação da cassação do seu registro no CRM. Hoje ele já está sendo alçado à mártir do movimento da humanização do parto/nascimento.

E esse texto não é sobre o mérito do processo e sobre as circunstâncias que ele aconteceu, é sobre o posicionamento de muitas ativistas em relação a este fato.

Antes de tudo, parto domiciliar não deveria ser assistido por médico obstetra. Parto não é ato médico. Gravidez e parto não são patologias. O médico somente deveria ser acionado em casos de gravidez de alto risco e intercorrências durante o parto. Um atendimento humanizado deveria, antes de mais nada, ser focado na mulher parturiente (ou em situação de abortamento) e depois em profissionais como a(o) enfermeira(o) obstetra e na doula. A mudança de postura dos médicos que assistem partos deveria ser um reflexo da mudança do sistema, mas não o foco.

Defender a presença de médicos no parto domiciliar é elitista. É elitista demais! Gostam tanto de citar modelos que privilegiam o parto domiciliar como o inglês ou o holandês, mas não se atentam ao fato de que esses mesmo sistemas estão ancorados na valorização do trabalho das parteiras! Médicos não assistem PD’s na Inglaterra nem na Holanda.

Médicos possuem formação intervencionista. Como já dito, eles estão preparados para lidar com intercorrências, com patologias. Se não há patologia, nem intercorrência, não é necessário médico. A sua presença só encarece todo o processo. Por este motivo, não é nem economicamente viável defender que partos domiciliares sejam atendidos por médicos.

Inclusive, o maior problema na assistência ao nascimento no Brasil é a centralização na figura do médico. E esse é o mesmo erro que muitas ativistas do movimento da humanização estão cometendo agora.

E é evidente que a postura dos médicos obstetras deve mudar. É sim necessário que a autonomia da mulher seja respeitada, mas esta é uma briga da humanização da saúde. A horizontalidade entre médico e paciente é uma das pautas desse movimento e abarca todo o sistema médico e não apenas a área ligada à obstetrícia.

Mas, sobretudo, muito me admira a comoção que tal cassação tem gerado. O referido profissional nunca foi de fato humanizado. E nunca foi porque não atende a todas as premissas da humanização do nascimento: medicina baseada em evidências, encarar o ato como evento transdisciplinar e, principalmente, respeitar a autonomia da mulher.

É humanizado aquele abertamente machista? Que não tem vergonha de dizer que o sistema patriarcal salvou as mulheres? E aquele que se coloca como a figura central no atendimento, em evidente confronto à premissa da transdisciplinaridade? Vocês estão lembradas que ele é contra a liberdade contratual da doula né? Que, em suas palavras, doula é como a salada do buffet, vem junto no pacote, comendo ou não...

Ele pode ser um excelente médico. O processo que culminou em sua cassação pode até ter sido injusto. E sua defesa neste sentido é legítima. Mas ele nunca foi humanizado. Transformá-lo em mártir do movimento é um grande erro.

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sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O paternalismo que está por trás da Criança Feliz

Século XVIII. França. O cuidado com as crianças não é visto como algo importante. A imensa maioria dos bebês nascidos em Paris é entregue logo após o nascimento para amas[1], retornando à casa de seus pais apenas após a primeira infância. Cerca de 50% dessas crianças não atinge os 10 anos de idade. Os tempos são difíceis e a França precisa de homens para compor o exército, contudo, os jovens sobreviventes do descaso com a infância são em sua maioria pessoas doentes e fracas. Não por acaso, na mesma época surge um movimento de mulheres oriundas da aristocracia e da alta burguesia, denominadas “preciosas”, que começam a refletir sobre questões acerca da igualdade de gênero, fim de casamentos impostos, prazer sexual e, a partir disso, iniciam os questionamentos sobre o papel da mulher dentro da sociedade.

Neste cenário, estes dois fatos são encarados como as ameaças à França patriarcal: não há homens para compor a frente de batalha e as mulheres começam a dar sinais de emancipação.

É então que em 1762, Jean-Jacques Rousseau publica a obra Émile. O discurso trazido neste livro foi uma grande ferramenta para cristalizar ideias de que a família deveria ser fundada com base no amor materno. É um discurso altamente intelectualizado que naturaliza a função doméstica da mulher. Agora, as crianças são novamente cuidadas dentro de casa pelas suas mães. Numa solução que ao mesmo tempo que reduziu a mortalidade infantil também trouxe de volta as mulheres ao espaço privado.

2016. Brasil. O governo lança um programa ironicamente intitulado “Criança Feliz”. Também fundado na suposta preocupação com as crianças, o programa tem por objetivo promover o desenvolvimento infantil. O público alvo será as famílias beneficiárias do Bolsa Família (para gestantes e crianças até 3 anos) e do programa Prestação Continuada (para crianças até 6 anos que foram afastadas de suas famílias por medidas de proteção), portanto de baixa renda, que receberão visitas semanais de técnicos enviados pelo governo e os resultados destas visitas serão condicionantes ao recebimento dos aludidos benefícios. No discurso de lançamento do programa, ouvimos a primeira-dama enaltecer qualidades inatas que mulheres teriam ao exercer o papel de mãe. Além disso, ela se comprometeu a conversar com outras primeiras-damas e prefeitas sobre o programa, em uma explícita exclusão a participação de homens no que tange o cuidado com as crianças. Uma boa análise do discurso do lançamento deste programa pode ser lida aqui.

Foto de André Coelho

Três séculos depois. Países diferentes. Mas o mito do instinto materno é novamente usado para reforçar a ideia de que mulheres são maternais, que o seu lugar biológico é no cuidado. Mulher como primeira-dama e não como governante. Homens no espaço público e não se preocupando com os cuidados na infância. Não é pelas crianças. Nunca foi pelas crianças. Trata-se sempre de controle social. De medidas que docilizam, submetem e conformizam individualidades. Parece exagero? Então analisemos o programa Criança Feliz.

A motivação do programa foi resumida da seguinte forma:
"Estudos longitudinais de acompanhamento da população ano após ano mostram que as habilidades mais importantes se organizam muito cedo, depois elas têm mais dificuldade de se organizar, de se estabelecer. Então, o impacto que tem uma infância bem cuidada é enorme no desenvolvimento, na aprendizagem, na escola, no sucesso profissional, nas competências que o ser humano vai ter no restante da vida. Por isso que é importante a gente acoplar esse programa com o programa que trata com a população mais vulnerável, o Bolsa Família para poder impactar a longo prazo e essas famílias saírem da condição de pobreza, a longo prazo, quando seus filhos tenham um desempenho profissional melhor que o deles e ajuda toda a família a sair [da vulnerabilidade]."

Portanto, o programa foca em “habilidades importantes” que em um primeiro momento não traz um sentido muito preciso, mas que após se traduz também em “sucesso profissional”, lembrando que o público alvo do programa é a “população mais vulnerável”. Que tipo de programa é esse que tem dentro de suas principais medidas o acompanhamento SEMANAL e DOMICILIAR da população de baixa renda com fim de promover sucesso profissional nas crianças??? Ainda, importante destacar que a apresentação do projeto foi voltado às mulheres, sempre apelando para o mito do instinto materno, e inclusive convocando apenas mulheres da administração para compor o comitê que traçará os rumos do programa.

Este programa evidencia que o governo entende que a responsabilidade pelas crianças é exclusivamente das mães e que estas, por serem pobres, se mostram incapazes de cuidar de seus filhos. Escancaradamente, trata-se de um programa paternalista que sem ao menos ouvir essas mulheres, dita mecanismos que irão influenciar diretamente nas suas vidas. Não há outra explicação. Se houvesse, estaríamos falando em programas que incentivassem a participação dos homens na criação dos filhos através da criação da licença parental ou mesmo da ampliação da licença paternidade. Ou então em programas que investissem na criação de creches com educadores bem remunerados e com estrutura para atender bem as crianças. Ou mesmo algum investimento em transporte público de modo que os pais não perdessem tanto tempo no trajeto casa-trabalho. Poderia ser também um programa que garantisse saneamento básico e uma estrutura de moradia que garantisse a saúde dessas crianças. Ainda, se o problema fosse dificuldade no acesso à informação e apoio, que se investisse na contratação de médicos da família, de psicólogos e de assistentes sociais que estivessem à disposição quando procurados e não que estas visitas fossem feitas de maneira invasiva e obrigatória como se está sendo proposto.

Mas quando o governo entra SEMANALMENTE na CASA da população pobre com fim de orientar a MULHER sobre a criação dos filhos, a mensagem que temos é que a única responsável pela criação dos filhos é a mãe. Que os pais não são foco do programa, tampouco a estrutura da cidade importa para que as crianças cresçam em segurança, tanto afetiva como material. Ou seja, o programa isenta o GOVERNO e os HOMENS dos cuidados com os filhos e implanta um projeto PATERNALISTA[2] que culpabiliza mulheres pobres e mães. Culpabiliza porque o programa é focado em um atendimento pedagógico à mulher mãe fazendo crer que qualquer “desvio” na conduta dos seus filhos advém de algum desvio na sua própria conduta. Como se a falta de estrutura, a qual deveria ser prestada pelo Estado, não fosse o principal causador de lesões aos direitos das crianças.

Criança Feliz nada mais é do que um programa de controle social, que tem por fim garantir a conformidade do comportamento dos indivíduos, com traços tão poucos sofisticados que fariam Michel Foucault ruborizar.

E é também um programa que fere a autonomia da mulher periférica, em sua maioria mulheres negras. Além de não terem direito sobre o próprio corpo - já que o aborto é ilegal e inseguro para as mulheres pobres-, além de serem torturadas no momento de parir - em vista das práticas normatizadas de violência obstétrica seguidas pela maioria dos hospitais públicos-, agora essas mulheres receberão visitais semanais de agentes do governo que lhe dirão como devem criar seus filhos!

E concordo com o discurso de Marcela Temer quando diz que a infância é uma fase fundamental da vida de qualquer ser humano. Concordo também que deva ser um programa voltado ao atendimento das mulheres, já que elas são maioria das beneficiárias do Bolsa Família e frente ao tão frequente abandono paterno. Contudo, há maneiras de atender a primeira infância sem imputar às mulheres a função exclusiva no cuidado e sem ferir a sua autonomia. É possível também olhar para a criança desde o nascimento enquanto ser humano portador de direitos e não apenas como um devir, um projeto de investimento.

É preciso apoio e estrutura para conseguir criar os filhos. Não será através da tutela das mulheres periféricas que as crianças terão uma infância com mais amparo. O posto de belas, recatadas e do lar foi muito bem aceito a três séculos, masnão hoje. Não. Hoje não passarão!




[1] 1780: o tenente de polícia Lenoir constata, não sem amargura, que das 21 mil crianças que nascem anualmente em Paris, apenas mil são amamentadas pela mãe. Outras mil, privilegiadas, são amamentadas por amas-de-leite residentes. Todas as outras deixam o seio materno para serem criadas no domicílio mais ou menos distante de uma ama mercenária. (BADINTER,1981).
[2] Paternalismo, em sentido lato, é um sistema de relações sociais e trabalhistas, unidos por um conjunto de valores, doutrinas políticas e normas fundadas na valorização positiva da pessoa do patriarca.
Em sentido estrito, o paternalismo é uma modalidade de autoritarismo, na qual uma pessoa exerce o poder sobre outra combinando decisões arbitrárias e inquestionáveis, com elementos sentimentais e concessões graciosas.
Para o Direito Constitucional, o Estado paternalista é aquele que limita as liberdades individuais dos seus cidadãos com base em valores axiológicos que fundamentam as imposições estatais. Desta maneira, se justifica a invasão da parcela correspondente à autonomia individual por parte da norma jurídica, baseando-se na incapacidade ou idoneidade dos cidadãos para tomar determinadas decisões que o Estado julga corretas. (Fonte: Wikipedia)
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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Por que ser mãe na política incomoda tanto?



A maternidade e a defesa da infância estão em pauta este ano na campanha eleitoral à Prefeitura de Curitiba e vem sendo trazidas pela candidata do PSOL, Xênia Mello. E, além disso, essas questões têm sido abordadas de maneira bastante honesta e política. Sim, política no sentido de afirmar que a maternidade e a infância são pautas que DEVEM fazer parte da vida política, sendo pensadas e consideradas em todas as decisões nas esferas legislativas e administrativas.

Desde sua última campanha em 2014, Xênia já fazia questão de mostrar que a maternidade era uma de suas pautas e como feminista que é nunca deixou de lado a máxima: o pessoal é político!



Ocorre que na atual campanha tenho visto muitas críticas em relação ao discurso que a Xênia adotou. Embora ela também afirme repetidas vezes que é negra e tem origem periférica, o que parece mesmo incomodar é sua condição de mãe aliada as falas tão frequentes sobre seu filho. Ora, ainda que as questões raciais e de classe sejam quase sempre silenciadas nos debates políticos, é sintomática a invisibilização das mulheres mães.

Quem a crítica pelo discurso ainda não entendeu que a maternidade e a infância devem ser pautas políticas. Não entendeu que durante toda a história da sociedade moderna, a maternidade foi um grande trunfo para manter as mulheres afastadas da vida pública e, principalmente, da vida política.

Reivindicar a luta política quando exercida em concomitância à maternidade é algo histórico e muito corajoso. É um grito solitário em meio a uma política feita majoritariamente por homens.

Quando uma mulher se dispõe a participar ativamente da vida política e ao mesmo tempo assume a maternidade, ela rompe com vários estigmas e etiquetas sociais que são usadas justamente para evitar que as mulheres tomem as rédeas das decisões políticas. Aliás, o instinto materno é um mito alimentado toda vez que as mulheres passam a se conscientizar dos prejuízos que lhes são causados em virtude da ausência de representação política. Faz-se acreditar que as crianças devem ser sempre cuidadas em período integral pela mãe, que ela é a melhor cuidadora para os filhos e que está biologicamente preparada para isto. Ora, cuidar de crianças é algo extremamente exaustivo quando a tarefa é realizada de modo solitário. Incumbir essa atividade exclusivamente às mulheres é um meio eficaz de afastá-las da política.

Ou seja, a ideia de que maternidade e política são esferas inconciliáveis só favorece àqueles que não querem que mulheres participem das decisões políticas. Ironizar o fato de que uma candidata fala exaustivamente sobre seu filho e sua maternidade é combustível para silenciar uma pauta tão importante e tão necessária às mulheres e às crianças.

E é justamente essa a importância de termos uma candidata que não cansa de afirmar que é mãe e que não faz essa afirmação de maneira demagógica, o que é tão comum na política. Geralmente quando as crianças são citadas em campanha eleitoral, são utilizadas como instrumento para enaltecer supostas virtudes do candidato. São comuns as imagens de políticos carregando crianças em horário eleitoral ou mostrando sua rotina em casa ao lado dos filhos. A criança nada mais é do que um token e nunca protagonista do discurso.

E este tipo de imagem nunca foi utilizado pela Xênia. Ao contrário, a imagem de seu filho transcende o espaço privado quando ela afirma que ele frequenta a creche municipal, que utiliza o transporte público, e quando fala de sua própria infância na periferia de Curitiba, sempre tão esquecida nos projetos políticos.

Posso afirmar porque conheço a Xênia há um bom tempo. Sua vida é coerente ao seu discurso político. Sua maternidade é exercida de forma coletiva de maneira a responsabilizar a todos pelos cuidados com as crianças. É disso que a cidade precisa: que a responsabilidade pelos cidadãos e, sobretudo, pelas crianças seja de todos. Que a cidade seja feita e pensada para as pessoas. Que as crianças e as mães possam sair do espaço privado e tomar a cidade.

A Xênia Mello é a única candidata que reivindica o direito à cidade para as crianças e encerro com as suas palavras que transmitem um desejo que eu também compartilho como mulher e mãe:

“A gente precisa construir formas de viver e construir a política que acolha e inclua as crianças, em respeito à sua autonomia e concebendo-a como cidadãs inclusive tomando-as como produtoras da política e não apenas como seres tutelados e objetos de submissão da vontade dos adultos. É nesse mundo que acredito, é por esse mundo que eu luto!

E para quem critica, reafirmo: vai ter mãe feminista na política sim e vai ter discussão acerca dos direitos da criança também! 


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segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Todas nós somos mães abusivas

Todas nós somos mães abusivas. Em maior ou menor grau, todas acabamos por abusar do poder de autoridade que nos é investido assim que nos tornamos mãe. E não porque essa seja uma condição inata da maternidade, e sim porque a característica iconoclasta a qual o papel de mãe foi alçado é algo inatingível. Tentar dar conta do papel de mãe que nos é imposto acaba, quase que inevitavelmente, em impingir abusos aos filhos que estão sob nossa autoridade.

A exclusividade do cuidado delegada às mães é algo que investe tanto poder numa atividade que nunca poderia ser exercida por uma só pessoa. Cuidar deveria ser sempre um verbo conjugado no plural. Dar conta de uma ou mais crianças é uma atividade tão exaustiva que exercê-la sozinha é uma missão fadada ao fracasso. Porque cuidado que é exercido por uma só pessoa exige que ela renuncie a todas as suas outras características para se tornar apenas cuidadora. Deixa-se de ser mulher para assumir apenas a condição de mãe.

Imagem do filme "Coraline"

E quando falo nessa exclusividade do cuidar não me refiro apenas às mães solteiras, falo do papel de mãe que nos é apresentado hoje. Falo da mentira do instinto materno, que hipocritamente presenteia mulheres com um dom único, o de cuidar. Eleva-as à posição da sacralidade. Preenche de maneira plena sua feminilidade. Em contrapartida, deixa homens livres para se eximirem do cuidado e tomarem o espaço público, já que para conquistar o título de bom pai basta que se troque fraldas.

Por outro lado, a figura da boa mãe é tão perfeita que dificilmente se conhecerá alguma, todavia, ludibriadas pelo mito do amor materno, estaremos todas dispostas a acreditar que possamos também conquistar tal título. E nesta busca cruel pelo reconhecimento fazemos reféns as crianças.

Qualquer comportamento supostamente reprovável de uma criança é logo imputado à maneira como a mãe educa. Sendo assim, filhos saudáveis, gentis e articulados seriam a prova de que a mãe fez um bom trabalho. Seriam, porque na falha a mãe será sempre a culpada, mas no êxito as causas são diversas.

E como conseguir filhos espelhos? Como fazer deles a prova de que passamos no teste da boa mãe? Doutrinando. E toda doutrina, seja ela deliberada ou não, vem marcada por abusos e excessos.

Portanto, não é a maternidade que é eivada de abuso, e sim a forma como exigimos que ela seja exercida que cria um ambiente favorável a ele. Mudar a forma como lidamos com a maternidade e, consequentemente, esvaziar o papel que atribuímos à mãe se mostra urgente.

O esvaziamento do papel de mãe é algo libertador não só para mulheres como também para seus filhos. A pluralidade no cuidado liberta a mulher para ser além da maternidade. Fornece à criança ferramentas para poder diferenciar práticas de cuidado abusivas das respeitosas. Porque saber reconhecer a violência consiste em um bom sinal de sanidade. Porem, quando se vive em um único ambiente, naturaliza-se as práticas ali exercidas, como se não houvesse realidade além daquela. Vivenciar a pluralidade, para além de outros benefícios, faz com que se crie um repertório capaz de reconhecer o abuso.

E é também por isso, que venho me convencendo que a forma como encaramos a maternidade hoje não só aprisiona as mulheres, mas também a seus filhos. Que a responsabilidade pelo cuidado não seja exclusiva de ninguém, que seja coletiva. Que não seja um fardo, que seja terno.
Este texto se originou após reflexão sobre este texto que, por sua vez, surgiu em virtude deste outro.
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